sábado, 10 de maio de 2008

Os Trinta Anos do Sindicato dos Professores da Região Açores …

Pela sua importância e pertinência, tomamos a liberdade de transcrever, na integra, a intervenção de Zuraida Soares, aquando das Comemorações do 30º Aniversário do Sindicato dos Professores da Região Açores.
Bom dia, a todos e a todas.
Permitam-me que comece por felicitar o Sindicato dos Professores da Região Açores, pelos seus 30 anos de vida e que agradeça o convite que me foi endereçado, para participar neste Plenário Sindical. É com muito prazer e honra que o faço.
E porque estamos ainda imbuídos do espírito do 25 Abril que, há dias, comemorámos, começaria por dizer que o projecto de modernidade que este nos trouxe, teve a sua expressão concreta na conquista das Autonomias e de direitos sociais que são a marca da nossa democracia. Entre esses direitos, temos os serviços públicos, a segurança social, o serviço nacional de saúde, a democratização do ensino, a valorização da educação como factor central de desenvolvimento e de combate às injustiças. A escola tem sido um elemento central da crença no progresso, um elemento transformador das sociedades. A política sobre a escola e a democratização do ensino sempre foi demarcadora, porque define o modo como encaramos o saber, a emancipação intelectual, a distribuição dos meios de ler e interpretar o mundo, a autonomia de cada um e de cada uma. Também hoje é assim: a política sobre a educação é demarcadora, sobretudo porque vivemos uma crise nas escolas. O sentimento dominante em relação à escola é hoje de incerteza e de descrédito e até de escândalo. A massificação do ensino foi um processo extraordinário, mas não correspondeu a uma igualização das oportunidades sociais dos cidadãos. As promessas de que mais escola traria mais desenvolvimento, mais igualdade e maior mobilidade social, nem sempre se confirmaram. Em grande medida, a escola massificou-se sem se democratizar completamente. Avançámos muito no problema do acesso, mas não resolvemos o problema do sucesso educativo para todos e todas. O acesso à escola, por si só, não consegue romper o ciclo vicioso da pobreza, porque não garante a todos as mesmas condições de sucesso. A escola contribui para a reprodução social e, frequentemente, tem acentuado as desigualdades. A escola fabrica várias formas de exclusão. Não deixa entrar os que estão fora e esse é o problema do acesso. Põe fora os que estão dentro – e aí estamos perante o drama e a vergonha do insucesso escolar e do abandono, o qual esconde, regra geral, a pobreza e a exclusão social. Nenhuma sociedade democrática, e nenhum governo dito socialista, pode permitir que a escola, do ensino básico ao ensino superior, alimente mais as desigualdades de partida do que as desfaça.
É urgente a criação de condições para um acompanhamento mais individualizado dos alunos, onde se impõe que nenhuma criança, nenhum jovem, fique para trás, onde se exigem equipas multidisciplinares, trabalho em rede, psicólogos a tempo inteiro, nas escolas em contextos mais desfavorecidos.
É urgente o reforço de atenção e cuidado a crianças e jovens com necessidades educativas especiais. Sob este ponto de vista, a escola pública tem sido tudo menos inclusiva: milhares de crianças e jovens desprotegidos, sem apoio de professores especializados, profissionais altamente qualificados enxotados, intervenção precoce comprometida por falta de recursos humanos.
Os alunos querem uma escola onde se viva a democracia, uma escola que lhes dê educação para a sexualidade, ou outros saberes práticos, como saúde (dependências várias), igualdade de género, participação política, porque não?
A forma escolar actual é, em si própria, uniformizadora e adversa à diversidade. E, num certo sentido, a inclusão na escola deixou de fazer sentido, porque é difícil perceber para que é que precisamos de lá estar. A cada um destes problemas – o acesso, o sucesso, a diversidade dos públicos escolares e o sentido do trabalho escolar – nós só podemos responder com uma escolha: mais e melhor democracia. O problema das escolas não são, portanto, os professores, mesmo que se queira tantas vezes transformá-los nos culpados das políticas educativas. O problema das escolas não são os jovens, mesmo que se queira construir, histericamente, a imagem de que os estudantes são todos perigosos delinquentes. O problema das escolas não é terem demasiada democracia, na sua gestão, mesmo que se use essa distorção como argumento para subordinar as políticas educativas ao modelo das empresas.
Quebrada a confiança social entre as escolas e os vários actores sociais e a administração educacional, o que desponta é a “desconfiança que corrói a dedicação e a persistência de tantas instituições e de tantos profissionais”. A “ideologia do desprezo” sobre as escolas e os seus profissionais só alimenta a estagnação e a desconfiança. E ninguém levou tão longe a desconfiança e o desprezo como estes governantes. Impuseram professores mal pagos e apostaram no reforço do tempo formal de crianças e jovens de 25 para 35 horas, sem pensar no tempo para descansar e para brincar que perderam, na instabilidade criada por professores que se sucedem, porque o que ganham é humilhante. E esqueceram, por exemplo, que as TIC e o Inglês deveriam integrar o currículo. A crise da escola não é uma crise técnica, relacionada com um problema de eficácia. É uma crise política, ligada a um problema de legitimidade. Não há forma de resolver esta crise, sem a pensar politicamente e sem a articular com os diferentes projectos de sociedade que conflituam no país.
As escolas ambicionam por autonomia curricular e pedagógica, gestão de recursos, horários, número de alunos por turma. Mas não querem contratar professores. O que é que as escolas condenam? A visão empresarial da escola e a tecnocratização da gestão. Os discursos conservadores sobre a educação ganham hoje espaço público e são cada vez mais agressivos. Conjugam a saudade de uma escola de elites, da “homogeneidade perdida” do tempo em que os alunos vinham todos das mesmas famílias e das mesmas culturas, com a ideia de que o insucesso e a exclusão é uma inevitabilidade, numa escola exigente. Algumas crianças estariam destinadas a um “sucesso parcial” e essa desigualdade é que permitiria a selecção social dos melhores. Este darwinismo social não serve a democracia, porque considera que o próprio processo de democratização da escola só pode levar a dificuldades – e até à impossibilidade – no cumprimento da sua missão. E aí temos Bolonha e o “salve-se quem puder”. É preciso denunciar o improviso e a pouca seriedade, na conversão a Bolonha (com a explosão súbita do número de cursos-109), condenar a publicação tardia da legislação, censurar as indefinições governamentais sobre o financiamento que atrasou o trabalho sereno de transição, denunciar que, sobre as instituições, pendia a ameaça: ou se faziam as adaptações para os 3 anos, ou o financiamento estava em risco. Bolonha, em Portugal, é uma oportunidade perdida, é um sem rei nem roque, é que desde o início do processo foram criadas 125 licenciaturas, 461 mestrados e 64 doutoramentos, com a total indiferença da tutela.
Ora, a resposta democrática valoriza a diversificação dos públicos escolares, a interculturalidade, a heterogeneidade, os diferentes comportamentos, linguagens, classes e nacionalidades que habitam a escola portuguesa. A resposta democrática rejeita a discriminação dentro da escola.
A escola que existe é responsável, não apenas pela reprodução das desigualdades, mas pela produção de uma exclusão que resulta da própria organização escolar. A educação inclusiva tem de romper com os valores da escola tradicional, do aluno-padrão, de aprendizagem como transmissão, de escola como estrutura de reprodução. A escola não pode ser um lugar de desigualdade e sofrimento. A democracia precisa de restituir a professores e alunos as condições mínimas para a sua felicidade. Essa felicidade é um enorme desafio. Trata-se de superar a forma escolar, de reinventar a escola e o trabalho que lá é feito. É obrigatório denunciar a excessiva burocratização da actividade docente e a perda de qualidade de tempo para o trabalho pedagógico. Professores, uma profissão em risco, quando nenhuma escola pode arriscar perder do horizonte a qualidade das aprendizagens dos seus alunos, por mais desfavorecido que seja o seu contexto. E, até hoje, ninguém foi capaz de explicar para que é que serve um estatuto profissional que divide artificialmente a carreira e onde o eixo da valorização não é a qualidade das aprendizagens, mas critérios estritamente administrativos.
A limitação da democracia na vida das escolas, na sua gestão, na sua organização, é sempre um empobrecimento da escola pública. Se pedirmos a professores e alunos para se demitirem de participar na gestão das escolas, não nos admiremos que se demitam também da gestão do país. A cidadania não se estuda para um teste, aprende-se exercendo-a, na escola desde logo. Elegendo os órgãos, fazendo o debate democrático, vivendo com o conflito. Criando uma escola para as pessoas, um espaço de realização, de saberes para a vida, uma escola que assuma, por exemplo, o ensino artístico como uma prioridade. Assumindo a necessidade de reduzir currículos e programas, nomeadamente, no 3º ciclo.
A ideia de que a democracia, enquanto forma de vivência para as escolas, é ineficaz ou morosa – logo, precisa de ser substituída pelo autoritarismo imposto de fora ou pelo gerencialismo importado do mercado – é uma ideia perigosa, não apenas para as escolas, mas para o país. É impossível pensar a escola como uma ilha isolada do mundo. A escola não pode resolver todos os problemas sociais. Não poderá nunca existir uma escola inclusiva numa sociedade que não o é. As expectativas de mobilidade social associadas à escola – determinantes na sua valorização pelas pessoas – estão hoje a ser frustradas pelo acréscimo das desigualdades e da exclusão. O aumento do desemprego, a precarização generalizada da juventude e o empobrecimento do país dá-se hoje, em simultâneo, com um acréscimo das qualificações escolares. O problema é, portanto, das escolhas políticas dos sucessivos governos PS/PSD, que amarram o país à pobreza e ao défice social. De nada valem as declarações vazias das almas sensíveis que tanto se preocupam com a «exclusão», porque os mesmos responsáveis políticos que se condoem com a exclusão têm sido insensíveis à acentuação das desigualdades. A crise da escola não pode ser equacionada senão remetendo-a para a crise do compromisso entre capitalismo e democracia, compromisso que tinha sido assegurado, até certo ponto, pelo Estado Social. A desregulação dos direitos do trabalho, o desmantelamento dos serviços públicos que é o dogma do liberalismo dominante, a restrição democrática que significa a destruição de direitos sociais trazidos pela Revolução são os factores que estão, primordialmente, na origem dos fenómenos de exclusão. Para que a extensão da escolarização possa ser, como sempre advogaram os seus mais generosos defensores, factor de progresso e de emancipação das classes exploradas, é indispensável impor mudanças profundas no próprio trabalho. A inadequação do sistema educativo e formativo em relação ao mercado de trabalho é uma profecia liberal invertida. Não temos qualificações a mais. Temos, isso sim, falta de empregos qualificados, exploração dos jovens, um modelo produtivo atrasado baseado na mão-de-obra barata, que precisa de taxas de desemprego estrutural para manter taxas de lucro e uma pressão permanente sobre os trabalhadores e as trabalhadoras. A estrutura de relações de produção existente em Portugal bloqueia as forças, potencialmente produtivas, produzidas no sistema de ensino. Este problema é, a par da educação, um dos maiores défices democráticos que hoje vivemos. A geração dos 500 euros, vive na corda bamba, congelada pela precariedade. É uma geração em relação à qual os Governos têm virado as costas. A precariedade foi imposta como modo de vida: nenhuns direitos, nenhuma capacidade de projectar um futuro, nenhuma garantia de respeito, nenhuma certeza de emancipação. Muitos dos direitos que fizeram parte do código genético da democracia de Abril não existem para grande parte dos jovens: Empresas de Trabalho Temporário que falsificam relações de trabalho. Falsos recibos verdes, a começar pelos que existem no Estado. Contratos a prazo que se sucedem. Estágios não-remunerados, uns atrás dos outros. Arbitrariedade laboral completa. Esta é a condição de toda uma geração que já nasceu em democracia. A democracia não pode ser confiscada por ninguém. Não é apenas um sistema político e o voto livre, que é essencial. Uma democracia de alta intensidade é aquela que se estende a todas as esferas da vida, a todas as relações sociais. A democracia é a resposta mais forte contra todas as formas de dominação – no espaço da empresa, na escola, na família, na sexualidade. É isso o socialismo do nosso tempo, um projecto imenso que se encontra por cumprir. É o compromisso com esse projecto que faz hoje a diferença, entre o situacionismo e as alternativas.
Mas, nos Açores, é o situacionismo que determina a orientação política conducente a novas e maiores desigualdades sociais. A linha privatizadora anunciada pelo Presidente do Governo Regional, sobre serviços essenciais para a Região – como sejam os transportes marítimos e aéreos e respectivas infra-estruturas, a energia e a saúde, entre outros -, é, ela própria, catalizadora de desigualdades. Mas, no contexto específico do desenvolvimento económico, social e demográfico dos Açores, acentuado pela sua localização geográfica, esta linha política atenta contra a democracia e favorece uma minoria possidente, em detrimento da maioria dos açorianos e açorianas. E é tanto verdade esta afirmação, quanto é certo que ela implica o desvio de dinheiros públicos para assegurar os lucros das novas empresas que impõem, ao Governo Regional, o pagamento agiota dos seus serviços.
Este modelo de desenvolvimento, que favorece a proliferação de uma economia assente numa mão-de-obra desqualificada e barata, é condicionador de uma escola massiva, esclarecida e pujante de conhecimento, situação que hoje já estamos a sentir. Na verdade, a política educativa regional, ainda que com diferenciações positivas em relação ao Continente, segue-lhe os traços essenciais. Aí estão o incremento dos horários, o fechar de quadros das escolas, o aumento do número de alunos por turma, a ausência de apoio a alunos com necessidades específicas, a inexistência de apoios individualizados (através de psicólogos e assistentes sociais, dedicados aos problemas da escola), a mediocridade do parque escolar, mesmo que com honrosas excepções. Em suma, o desinvestimento na educação, que consubstancia um darwinismo escolar.
As recentes lutas dos professores, em todo o país, obrigaram os governos da República e Regional, a alguns recuos, nas suas intenções. A dignificação da carreira docente é factor primordial de uma escola democrática, inclusiva, vivenciada e criativa, que abra as portas do futuro para milhões.
Bem-haja a vossa determinação, na defesa da escola pública.
Bem-haja a vossa determinação na defesa da democracia!
Zuraida Soares

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