sexta-feira, 21 de março de 2008

A Flexinsegurança

A Flexinsegurança
Por : Boaventura de Sousa Santos
( Publicado na Visão em 2 de Agosto de 2007 )

Vivemos um tempo em que a estabilidade da economia só é possível à custa da instabilidade dos trabalhadores, em que a sustentabilidade das políticas sociais exige a vulnerabilidade crescente dos cidadãos em caso de acidente, doença ou desemprego.
Esta discrepância entre as necessidades do "sistema" e a vida das pessoas nunca foi tão disfarçada por conceitos que ora desprezam o que os cidadãos sempre prezaram ou ora prezam o que a grande maioria dos cidadãos não tem condições de prezar.
Entre os primeiros, cito emprego estável, pensão segura e assistência médica gratuita.
De repente, o que antes era prezado é agora demonizado: a estabilidade no emprego torna-se rigidez das relações laborais; as pensões transformam-se na metáfora da falência do Estado; o serviço nacional de saúde deixa de ser um benefício justo para ser um custo insuportável.
Entre os conceitos agora prezados, menciono o da autonomia individual.
Este conceito, promovido em abstracto para poder surtir os efeitos desejados pelo "sistema", esconde, de facto, dois contextos muito distintos: os cidadãos para quem a autonomia individual é uma condição de florescimento pessoal, a busca incessante de novas realizações pessoais; e os cidadãos para quem a autonomia individual é um fardo insuportável, que os deixa totalmente vulneráveis perante a adversidade do desemprego ou da doença, e que, em casos extremos, lhes dá opção de escolher entre os contentores do lixo do bairro rico ou pedir esmola nas portas do metro.
No domínio das relações laborais está a emergir uma variante de conceito de autonomia. Chama-se flexigurança.
Trata-se de aplicar entre nós um modelo que tem sido adoptado com êxito num dos países com maior protecção social da Europa, a Dinamarca.
Em teoria, trata-se de conferir mais flexibilidade às relações laborais sem pôr em causa a segurança do emprego e do rendimento dos trabalhadores.
Na prática, vai aumentar a precarização dos contratos de trabalho num dos países na Europa onde, na prática, é já mais fácil despedir.
Não vai haver segurança de rendimentos, porque, enquanto o Estado providência da Dinamarca é um dos mais fortes da Europa, o nosso é o mais fraco;
porque o subsídio de desemprego é baixo e termina antes que o novo emprego surja;
porque o carácter semiperiférico da nossa economia e o pouco investimento em ciência e tecnologia vai levar a que as mudanças de emprego sejam, em geral, para piores, não para melhores, empregos; porque a percentagem dos trabalhadores portugueses que, apesar de trabalharem, estão abaixo do nível de pobreza, é já a mais alta da Europa;
porque o factor de maior vulnerabilidade na vida dos trabalhadores, a doença, está a aumentar através da política de destruição do serviço nacional de saúde levada a cabo pelo Ministro da Saúde;
porque os empresários portugueses sabem que dos acordos de concertação social só são "obrigados" a cumprir as cláusulas que lhes são favoráveis, deixando incumpridas todas as restantes com a cumplicidade do Estado.
Enfim, com a flexigurança que, de facto, é uma flexinsegurança, os trabalhadores portugueses estarão, em teoria, muito próximos dos trabalhadores dinamarqueses e, na prática, muito próximos dos trabalhadores indianos

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